Alegorismo medieval, arquitetura gótica e a Iconologia de Panofsky

Do Alegorismo Medieval:

“Como a Iconologia, o Alegorismo Medieval é um método tripartite de interpretação. Inicialmente aplicado à exegese bíblica, o então “alegorismo sagrado” posteriormente se torna “alegorismo universal”, ao ser aplicado a todas as obras do Criador. Como demonstraremos posteriormente, o Alegorismo Medieval é o principal elo genético entre a Iconologia, o método mais utilizado em história da arte, e o habitus, obra “mais apaixonadamente defendida por Panofsky”.

O Alegorismo apresenta três camadas de sentido, à semelhança da Iconologia: o primeiro, literal – ou histórico –, o segundo, moral ou – tropológico – e o último, místico – ou anagógico. Também são trinos seus postulados: primeiramente afirma que tudo é imagem; em seguida, afirma que todas as imagens contêm discursos análogos; e em seu último postulado afirma que todos os discursos têm o mesmo objetivo de expor a presença de Deus.

Assim como o conceito de habitus, a história do Alegorismo é de longa duração e fundamental para a compreensão de suas apropriações posteriores. O Alegorismo surge na Antiguidade como o habitus, sendo praticamente uma “sobrevivência dos antigos” presente na exegese bíblica semítica e grega. Por volta do século IV, em Jerônimo, Ambrósio e Agostinho, tal método de interpretação já visava o acesso tanto ao sentido imediato quanto às verdades de ordem superior. Agostinho – em De Trinitate – é especialmente importante para a história do Alegorismo, pois transforma o Alegorismo sagrado em universal, presente não apenas nas sagradas escrituras, mas em todas as obras do Criador.

Agostinho fundamenta o Alegorismo universal na carta de São Paulo aos Romanos, a qual afirma que toda criação é sinal e símbolo do Criador, pois assim como Ele, ela também é trinamente estabelecida: em unidade, espécie e ordem. Portanto, de acordo com a tradição neoplatônica cristã, Agostinho tornou universal o Alegorismo sagrado.

Na Summa Theologica, de Tomás de Aquino, a longa história do Alegorismo e do conceito de habitus se entrecruzam. Além de comentar Ética a Nicômaco de Aristóteles, utilizando o conceito de habitus, a discussão acerca do simbólico na mesma obra se remete a De Caelestis Hierarchia de Pseudo-Dionísio. Seguindo a tese de Panofsky, as histórias do Alegorismo e do habitus se entrecruzam também na Catedral de SaintDenis, do abade Suger. Além de ser a primeira manifestação do gótico e dos “hábitos mentais” escolásticos segundo Panofsky, a catedral expressa o Alegorismo nas inúmeras referências planejadas por Suger (das quais trataremos a seguir). A própria catedral recebe o nome de Pseudo-Dionísio, o Areopagita – Saint-Denis à época, cuja obra era profundamente conhecida por Suger.

Além do entrecruzamento histórico e da apropriação por Panofsky do habitus e do Alegorismo, o próprio Alegorismo Medieval pode ser interpretado como um “hábito mental”, ou um “hábito de interpretar trinamente”, pois era amplamente difundido através da formação intelectual gótica. Mais ainda, o Alegorismo é fundamental para a compreensão da arte medieval, dado que sua construção interpretativa trina viabiliza sua função basal de instruir e educar. Inúmeros autores exemplificam a importância da arte para a instrução: Gregório, o Grande, no século IV, escreve a Serenus, bispo de Marselha: “Car c’est une chose d’adorer une peinture, mais c’en est une toute autre que d’apprende d’une histoire peinte quoi adorer”. Walafrid Strabo, no século IX, afirma: pictura est quaedam litteratura illiterato; Honorius d’Autun, no século XII: “La peinture est faite sans aucun oute pour instruire”. O mesmo Honorius d’Autun, se valendo da universalidade do Alegorismo após Agostinho, demonstra a trindade de sentido dos grandes lustres circulares de uma igreja. O primeiro sentido é literal, ou seja, estético e utilitário. O segundo é tropológico: a visão da coroa luminosa nos adverte que somente os servidores de Deus recebem a coroa da vida e os prazeres da luz. O terceiro é anagógico – a coroa, feita de ouro e prata, ferro e bronze, nos remete aos elementos de que a Jerusalém celeste é feita. Portanto, o Alegorismo seria também um hábito, ou uma prática, largamente difundido e que exerceria uma função fundamental na formação dos indivíduos de um contexto caracterizado pela intensa religiosidade e pela população amplamente iletrada. Como os “hábitos mentais” escolásticos se difundiriam na construção das grandes catedrais, o hábito do Alegorismo presente nas pinturas e nas decorações facilitaria a difusão, a instrução e o contato dos fiéis com o divino, e se arraigaria neles.”

Do conceito de Habitus:

“O conceito de “hábitos mentais” de Panofsky fundamenta a analogia por ele construída entre a arquitetura gótica e a escolástica, sendo, portanto, basal para a construção de sua tese. Ele identifica dois hábitos mentais presentes no contexto: a manifestatio – a clarificação escolástica – e a concordantia – a reconciliação dialética.

A concordantia é a tentativa de reconciliação entre possibilidades contraditórias. Na escolástica, esse princípio é exemplificado pelo esquema trino videtur quodsed contrarespondeo dicendum de Tomás de Aquino. Como nos textos escolásticos, a arquitetura não aceita simplesmente uma autoridade e rejeita outra. Autoridades devem ser conciliadas, como as palavras de Agostinho tiveram de ser conciliadas com as de Ambrósio. […]

Panofsky exemplifica esse mesmo esquema dialético na resolução das quaestiones dos elementos arquitetônicos das igrejas de Sens (o videtur quod), Laon (o sed contra) e Lessay (o respondeo dicendum ou solução definitiva).

Já a manifestatio, como a concordantia, também se expressa de forma trina através da demanda por totalidade – ou pela enumeração suficiente – que “tendia a aproximar, pela síntese assim como pela eliminação, uma solução perfeita e final”; a organização segundo um sistema homólogo de subdivisão em partes de partes – ou articulação suficiente; e a coerência dedutiva (e distinção) entre as partes – ou interrelação suficiente.

Como o Alegorismo Medieval e a Iconologia, a tese principal de Arquitetura Gótica e Escolástica também é construída sobre fundamentos trinos. O primeiro fundamento é a observação do fenômeno geográfico e cronológico do gótico na região em torno de Paris no segundo quartel do século XII, onde constata-se o surgimento tanto da Escolástica quanto da arquitetura gótica. O segundo é a definição dos princípios do Alto-Gótico à semelhança da manifestatio escolástica e a um sistema ordenado de exposição. E o último fundamento expõe que a visão do desenvolvimento do gótico, por volta de 1250, segue um padrão da concordantia escolástica, ou a aceitação e reconciliação final de possibilidades contraditórias.

Tal padrão dialético é expresso mais uma vez em três problemas góticos característicos (ou, para levar a cabo sua analogia, a quaestiones): a janela rosácea na fachada ocidental, a organização da parede do clerestório e a conformação das colunas da nave. Estes problemas evidenciam tal padrão dialético, pois expressam conflitos e soluções arquitetônicas tipicamente góticas, onde tais elementos são negados, conciliados ou sintetizados no projeto de construção das catedrais. […]”

Artigo completo em PDF no site da revista Arte e Filosofia – UFOP:

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